sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Apaixonara-se tanto pelo seu ofício, de pintar, e por pintar, traçar e esboçar o mundo no abismo do traço, que pensou em tatuar. Queria gritar pro mundo que queria pintá-lo em si mesma. E em sendo carne, ter o traço, seu, nela. Mas sabia que isso seria um exagero talvez equivocado, um equívoco talvez exagerado. Por isso contentava-se em planejar, silenciosamente, daqueles desejos secretos sonhado com minúsculos efêmeros e desafortunados detalhes, daqueles sem a menor pretensão de existir, mas os quais talvez guiem nossos gestos. E neste detalhe secreto, sonhado nas pupilas, e aspirado pro universo, sonhava com o dia que se reencontrariam novamente, e de tanto se amarem, seus corpos teriam uma tatuagem daquelas, que só a gente vê. Que só dois vêem. Como uma pinta que aparece nas costas, ou uma cicatriz na canela. Um segredo a dois, marcas na carne que só dois sabem e poderão saber.
Pensava que não ter sua tatuagem doía mais do que se escrevesse seu nome em seu corpo, por inteiro.
Sua ausência era um silêncio torturante.
Eu exagero você. Aumento você. Aumento o que foi. Não me interessa. O que é da carne, é carne.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Pertencer

Esse tal do pertencer. Viemos sempre de algum lugar. E daqui, da terra vermelha, do céu azul, dos sabiás que pousam nas janelas, da vida. Conhecemos pessoas que namoram pessoas, que amamos pessoas.

você, você, você

Num lampejo
de resquício,
do resto
da lembrança:
você.

Consigo lembrar
de um sonho 
sublimado.
E você.

Sonhei 
A noite inteira
Com você,

e foi sublime.

Pois,

Com a distância
Do abismo
Entre
eu
E
você

Só resta esquecer 
De lembrar 
Que preciso te esquecer.

Sublimação,
Negação,
Pulsão de morte. 
Nem Freud explica esse 
Sonho com você. 

É tão somente
ainda o
Desejo visceral
De ter, em mim, você. 

Palavra vazia em promessa sincera, que esvazia a promessa insincera. No fundo somos tão efêmeros, e como dois e dois, somos dois. Dois que sonham em ser mais que dois. Mas que na soma dos dois, somos tão somente dois, como a soma de todas coisas da vida. A gente faz eco. 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

primaveril

afinal o que somos pra além dessa necessidade de engolir o mundo, senti-lo digerir, e produzir batimentos?
a primavera que grita do lado de fora. as cigarras, os flamboyants, os pedaços de flores, ainda úmidas, tentando penetrar e colorir as calçadas cinzas.
o que somos senão essa tentativa de tornar os inertes, em coisas vivas?
a tinta morta, que produz um quadro novo, esse grafite no papel branco, essas palavras mortas, na tela fria de um computador. são vazios vivos.
o que somos senão sensações perambulantes, objetos inanimados que retornam à vida, assim que a toca.
apesar do desejo ser, em essência, pura perda. tem sido bom achá-lo, por aí.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Ensaio sobre o avesso, e memórias.

Tenho medo quando vira a meia noite. O dia começa com a noite. O começar no seu próprio fim. É um revés que estamos tão acostumados. Nem notamos. Alguns grilos ressaltam o orvalho que supomos cair. É o sereno de mãe. Daquele que escutamos desde novos a prevenir, na chegada da madrugada. Não sabemos o que é, porque não o vemos. Mas podemos sentir. A noite tem dessas coisas: com menos luz olhamos menos os detalhes banais; que com a claridade latente da luz reflete com tanto ardor nos olhos. A vida de noite tem mais silêncios, mais pausas. Dá vontade de migrar pro mundo dos sonhos, logo. Ao mesmo tempo, é bom viver dos silêncios e se alimentar de suposições . Desejar em silêncio. Sempre desejamos em silêncio, eu sei. Mas de noite é um silêncio mítico. De noite supomos muitas coisas. Só podemos ver clarões e borrões das janelas acesas. Corujas que piam. Morcegos que passam como lampejos. Gosto da monocromia noturna. A estrela transparente, no céu preto. O contrário em evidência. O revés dos olhos. O negativo dos olhos. O ver com preenchimento. A noite é isso pra mim... Um revés, como naquele triângulo sem começo nem fim. 
A gente começa o dia de noite. E foi nesse revés do contrário das coisas que eu me sentia criança. E é assim, até hoje. O contrário do contraste, sempre tão evidente em si mesmo, para mim já deixou de fazer sentido. 
A noite a gente lembra que não desejamos quem mais amamos, e que somos homens e mulheres , e bichos. Ecoando a lua cheia. Atrás de deleite, e prazer. A noite lembramos pelo revés do sim, o próprio sim. Lembramos que tudo é simbiose, gestação, e que somos separados por um umbigo e pelo tempo. A dor de separar é tanta. Vivemos no mundo com um furo, um buraco negro que dá no ventre e desemboca no coração. A noite esquecemos de sentir fome, esquecemos do mundo, sentindo sonhos. Ser criança num mundo de adultos. A noite é inocente, mas a gente adora tirar essas inocências, todos os dias. Lembrar de não desejar quem mais desejamos. Tarefa difícil. Lembrar de esquecer a própria pélvis. E o umbigo. Aquele buraco que nos separou da mãe. Aquele que a água do mar entra e faz bacia, preenchendo. Aquele de Iemanjá. Lembrar de ser só .Lembrar de lembrar aquilo que um dia tivemos que esquecer. Memória tem dessas coisas de umbigo. Memória tem dessas coisas de fadas.